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quinta-feira, 15 de junho de 2006

Superdimensionamento?

Em termos de “instâncias de consagração” de música popular, tivemos apenas o teatro de revista – isso mais ou menos de meados do século XIX até a chegada do disco na virada do século. Aí por volta do início do século XX a um já modificado teatro de revista de revista se juntam algumas “casas editoras musicais”, pois antes disso estas só se dedicavam à impressão de partituras de música erudita. Este filão de consagração durou bem pouco após a chegada do disco, com a Casa Edison, de Figner. A indústria fonográfica "nacional" propriamente dita só se estabelece a partir de 1912, com a Fábrica Odeon, de Fred Figner. Até aí, os discos eram gravados no Brasil (por artistas de teatro de revista e de circo), enviados à Europa para serem prensados e daí retornados para serem comercializados. Mário Pinheiro, Cândido “Índio” das Neves, Catulo da Paixão Cearense e Bahiano foram nomes importantes do período. Entre nós, o cinema falado estabeleceu-se a partir de Coisas Nossas, de 1931, gravado em São Paulo ainda pelo sistema Vita-Phone, sem a participação de artistas cariocas. Entre nós, o rádio nasce “educativo” em 1923 e, entre esse ano e 1932, os artistas eruditos e populares que se apresentavam cantando e/ou tocando recebiam cachês simbólicos. A partir de 1932, o rádio torna-se comercial
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O fato é que o negro brasileiro (entre aqueles que sabem o que querem) tem que começar a se decidir, ou seja, tem que começar a fazer sua cabeça no sentido de separar o joio do trigo. A “tradição” da história “oficial” manda dizer que o negro foi trazido à força da África e conseguiu, por cima de pau e de pedra, conservar sua cultura. Até aí tudo bem para ambos os lados da questão. Só que essa cultura negro-africana trazida para as Américas e para o Caribe foi, digamos, “contaminada” pela cultura autóctone americana (dos índios) e não menos pela do colonizador europeu, que já fazia das suas na África há muito. Isto significa dizer que “música popular” no Brasil, como o conceito que tratamos aqui, não pode ser somente uma “coisa de negro” como normalmente se pensa. [Muito cuidado ao ler essas linhas. Por favor, não pensem que sou racista e pronto. Pensem bem no que escrevi e verão que minhas palavras são a expressão da verdade que quer ir de encontro ao que está aí, que não tem olhos e, no entanto, vê chifre em cabeça de cavalo...]
Contudo, continuemos.
Se hoje o aspecto cultural mais “interessante” da música popular é o louvabilíssimo aporte negro que ela possui, isso não significa exatamente que é o único a entrar em sua composição e que, por isso mesmo, todos tenhamos que louvá-lo somente por causa disso – sob pena até de ser acusado de “racista” ou coisa parecida se não o fizermos. A realidade étnico-musical de um país como o nosso, imenso, e com tanta variedade cultural, não pode ser reduzida apenas a uma contribuição singular em qualquer tipo de contribuição cultural – a dos negros, por exemplo, que é riquíssima, mas não é a única e nem tampouco é essencialmente pura e cristalina, como normalmente se crê. Diante disso, como é que se pode afirmar com todas as letras que o samba, como gênero musical e/ou dança, é uma contribuição apenas negra à cultura brasileira?
Não estou aqui para negar a contribuição de origem africana a nossa cultura musical como um todo – aliás, seria louco se o quisesse fazer. Mas que há um superdimensionamento mui suspeito embutido nessa prerrogativa, isso há de fato - até porque ainda não se conseguiu mudar a condição social da maior parte de nossa população “de cor” apesar e/ou por causa dessa “boa propaganda” em torno da contribuição africana a nossa música. Os brasileiros não temos que copiar ipsis litteris a tradição norte-americana do jazz, do blues, do rhythm’n’blues etc. Nos Estados Unidos a história dos negros foi e é completamente diversa das dos negros que vieram para o Brasil, não interessando nesse momento se foi e é melhor ou pior. Imaginem só o seguinte: por que os negros norte-americanos não têm hoje (nem nunca tiveram), como os brasileiros, uma só religião baseada nas crenças que trouxeram consigo da África? O que aconteceu para que os negros norte-americanos não tivessem escolha religiosa alguma, a ponto mesmo de serem obrigados a abraçar um tal “protestantismo negro”, só deles, algo semelhante ao de seus senhores? Pelo menos aqui no Brasil e, de resto em outros países latino-americanos e caribenhos, os negros conseguiram, novamente, por cima de pau e de pedra, conservar quase a totalidade de suas crenças religiosas usando artifícios tais como o “sincretismo” – aliás, termo hoje em desuso nas ciências sociais.
Sobre o superdimensionamento citado, cujas origens mais remotas na história brasileira da música popular datam exatamente das décadas de 1920-30 (coincidindo com a aparente “valorização” dos estudos sobre o negro na sociologia brasileira do mesmo período), é preciso dizer que houve, nessa mesma época, uma importante mudança de eixo. Bem antes dessa época, durante o século XIX, por exemplo, o país urbano, quase que obrigatoriamente, se voltava muito mais para as coisas do campo do que para as coisas da cidade, ou melhor, o centro do país era medido pela visão que a cidade obtinha dos desenvolvimentos rurais, sobretudo das atividades agrícolas. Na verdade, essa situação só começou a ser alterada quando, na virada do século, eclode, como por encanto, através da mídia impressa e a reboque de toda uma geração literária nela incrustada, a vontade aparentemente geral de dotar o lado urbano do país (sobretudo nossa capital, o Rio de Janeiro) de progressos urbanos nitidamente europeus (quase sempre “de fachada”), ou seja, tentando (e, enfim, conseguindo) assemelhar nosso mundo urbano ao da matriz, das cités européias, como se fôssemos uma Paris nos trópicos.
Bom, e assim foi feito. Deu no que deu...